JOGOS PARA A ETERNIDADE (14) - Portugal-Grécia 0-1 / Final do Euro 2004

Joga-se hoje um Portugal-Grécia. Só a pronuncia destas duas palavras juntas causa alguns arrepios, lembrados que estamos de um tal 4 de Julho de 2004.
Portugal estava à beira de conquistar o seu primeiro grande título internacional. Depois de uma campanha brilhante, envolvendo épicas vitórias sobre Rússia, Espanha, Inglaterra e Holanda, a selecção de Scolari enfrentava na final a única equipa que a tinha derrotado: a Grécia, que no jogo de abertura nos vencera por 1-2 no Estádio do Dragão. Todo o país esperava vingança, e na euforia das vitórias que se foram sucedendo, ninguém acreditava que o título nos poderia fugir.
O F.C.Porto de Mourinho sagrara-se campeão europeu no mês anterior, e a base da selecção era agora constituída pela sua espinha dorsal (Paulo Ferreira, Ricardo Carvalho, Nuno Valente, Costinha, Maniche e Deco), depois de várias alterações introduzidas após a derrota inaugural. A dinâmica de vitória passava sobretudo por aí, mas o plantel luso contava ainda com Fernando Couto, Jorge Andrade, Rui Costa, Petit, Figo, Tiago, Pauleta, Nuno Gomes, Simão e Cristiano Ronaldo, grupo de qualidade e quantidade dificilmente igualável na história do nosso futebol.
A Grécia era a grande surpresa da prova, conseguindo sucessivas vitórias tangenciais sobre Portugal, França e Republica Checa, à custa de um férreo sistema defensivo e de um meio campo organizado, densamente povoado, e que além de manietar as equipas adversárias, destruía também os espectáculos.
Foi já depois das meias-finais– para as quais não consegui arranjar bilhete – que depois de muito penar pelas sombras do mercado negro, lá encontrei um precioso rectângulo mágico que me permitia estar presente naquilo que todos esperávamos ser a grande festa da coroação de Portugal como campeão europeu. Paguei uma quantia absurda, que por pudor me escuso a referir, mas poderei dizer que nunca na minha vida, antes ou depois, voltei a pagar uma quinta parte que fosse, por qualquer tipo de espectáculo em qualquer tipo de local.
Um irritante problema com os correios impediu-me de garantir atempadamente, e a preço normal, bilhetes para todos os jogos que pretendia, e o meu Euro 2004 foi também uma luta constante para conseguir estar presente no maior número de partidas possível. Acabei por ficar satisfeito (vi Portugal duas vezes com Grécia, também com a Inglaterra e com a Rússia, vi ainda o França-Inglaterra e o Suécia-Bulgária), mas financeiramente depenado…Para a grande final, ciente do momento histórico que estava a viver, não poderia deixar de marcar presença, e todos os sacrifícios se justificavam. Afinal tratava-se de ver Portugal levantar a taça de campeão da Europa.
Almocei no Barreiro e, longe de imaginar o que se iria passar em seguida, decidi esperar que a selecção saísse de Alcochete, para tentar ir atrás do autocarro, juntando-me assim à comitiva que se adivinhava longa e festiva. Quando cheguei perto do Montijo deparei incrédulo com o trânsito totalmente parado, e a maioria das pessoas fora dos carros com ar de quem não fazia contas de estar no estádio, com helicópteros das televisões a esvoaçar constantemente pelo local. Depois de alguns minutos de espera comecei a entrar em pânico. Liguei o rádio em busca de notícias, e estas não podiam ser piores: a selecção ainda não saíra do centro de estágio, pelo que a espera ainda ia ser longa.
Os minutos que vivi solitariamente dentro do carro não os desejo a nenhum adepto. Contrastando com toda a euforia que se passava em meu redor, eu kafkianamente via-me na iminência de, com um bilhete no bolso, que me havia custado pouco menos que os olhos da cara, falhar a presença na final, ou pelo menos perder os imponentes momentos iniciais (cerimónia protocolar, hino etc). O tempo foi passando e o drama adensava-se. Já depois de a equipa finalmente ter saído, os carros continuavam parados, dando sinais evidentes que muitas daquelas pessoas não pretendiam sair dali tão cedo – havia gente a pé, com bandeiras e cachecóis, a deambular pelo meio da estrada, a beber, a gritar. Pensei que, ponte fora até Lisboa, estaria tudo assim, e imaginei que só sobre a hora do jogo me seria possível sair dali. Se tivesse mais alguém no carro poderia ter saído a pé, procurado boleia em sentido contrário, e apanhado um barco para Lisboa. Mas sozinho…
Ao fim de bastante tempo começou-se a circular, mas muito devagar, demasiado devagar. O panorama no tabuleiro da ponte Vasco da Gama era idêntico. Não havia um metro quadrado sem carros, o barulho dos gritos e das buzinas era ensurdecedor, e no meio de toda aquela gente, um português desesperado e infeliz procurava dramaticamente forma de sair dali para fora com rapidez, de modo a poder chegar ao local onde a História se escreveria. Não adiantava berrar, nem buzinar, nem mesmo chorar. Tinha mesmo de esperar e acreditar naquilo que me começava cada vez mais a parecer um mero milagre: chegar a tempo à Luz.
E eis que o milagre aconteceu. Um ou dois quilómetros após as portagens a circulação normalizou. Procurei ganhar tempo. Lá consegui ultrapassar o rio.
À chegada a Lisboa fugi da segunda circular, e tratando-se de um domingo pensei que talvez fosse boa ideia seguir pelo centro. Chelas, Av.EUA, Santa Maria, Av.Lusíada. A poucos minutos da final Lisboa era, ao contrário do que cheguei a temer, um verdadeiro deserto.

Quase voei a caminho do estádio, preocupado com o último problema que tinha ainda para resolver: o estacionamento. Neste particular acabei por ser feliz. Ao contrário das grandes enchentes de alguns jogos do Benfica, uma final internacional leva muito menos carros. Uma parte importante das bancadas estava repleta de gregos, havendo ainda muitos outros estrangeiros, e poucos seguramente teriam chegado de automóvel.
Estacionei ainda bem longe, mas nem pensei duas vezes assim que deparei com um lugar disponível. Segui a correr para o estádio. Sentei-me na bancada superior central do lado oposto aos balneários, faltavam oito minutos para a partida se iniciar.
Ao meu lado estavam dois japoneses que não disseram uma palavra durante todo o jogo. Aplaudiam de vez em quando, mesmo em ocasiões em que dificilmente se compreendia o motivo - um Europeu também é isto. Mas o ambiente geral era frenético, sobretudo no apio à selecção nacional, embora os gregos se revelassem desde o início bastante barulhentos.
Ainda cantei o hino, com uma lágrima no canto do olho.
As equipas entraram em campo. Os onzes escalados não traziam grandes surpresas. Portugal alinhou com Ricardo, Miguel, Ricardo Carvalho, Jorge Andrade, Nuno Valente, Costinha, Maniche, Deco, Figo, Pauleta e Cristiano Ronaldo. Na Grécia, orientada por Otto Rehagel, a grande ausência era o futuro benfiquista Karagounis, a cumprir um jogo de castigo. Equipando de branco os gregos apresentaram-se com Nikopolidis, Seitaridis, Dellas, Fyssas, Basinas, Katsouranis, Giannakopoulos, Zagorakis, Charisteas e Vryzas.
A primeira parte pareceu desde logo demasiado táctica para aquilo que se esperava de Portugal. Sabia-se como a Grécia era especialista a adormecer os jogos e os adversários, e lembro-me de pensar precisamente nisso, com apreensão, ao intervalo. Ainda assim foram de Pauleta e Miguel as duas melhores oportunidades de marcar, mesmo que nenhuma delas se pudesse considerar clamorosa. O lateral direito então no Benfica, um dos pilares da equipa defensiva e ofensivamente, acabaria aliás por sair lesionado, sendo substituído por Paulo Ferreira.
Pouco depois do início do segundo tempo, na sequência de um canto, aconteceu aquilo que mais se temia. Marcando, a Grécia podia gerir o jogo da forma que mais lhe agradava, tapando todos os caminhos para a sua baliza. Num pontapé de canto do lado oposto ao que me encontrava, vi a bola sobrevoar a área portuguesa, e um malfadado Charisteas saltar e colocá-la na baliza, perante alguma passividade da defesa e algum desnorte de Ricardo. Nunca esquecerei o bruááá que se ouviu no estádio, vindo da zona, um pouco ao lado da minha, onde se concentravam a maioria dos gregos. Agora não havia dúvida, a coisa estava mesmo a correr mal.
Entraram Rui Costa e Nuno Gomes. O primeiro anunciara a sua despedida internacional para este jogo, e revelara-se decisivo sempre que entrara em campo durante a competição. O segundo estava também em grande forma, e fora ele que, diante da Espanha, marcara o golo do dramático apuramento para os quartos-de-final. Mas o tempo ia passando e pouco ou nada acontecia. Perto do fim, Figo dispôs de uma grande oportunidade, mas o seu remate saiu a milímetros do poste direito da baliza helénica. O jogo caminhava para um final dramático, e Markus Merk compactuava com algum anti-jogo grego, assinalando todas as quedas, mesmo as mais inócuas.
Quando o árbitro alemão apitou pela última vez, a sensação que tive foi a de acordar abruptamente de um sonho cor-de-rosa.
Ao ver o jogo num estádio onde quase metade das bancadas está em festa, dificilmente se tem com frieza a noção do drama em que o país está mergulhado. Foi assim de forma algo adormecida que fiquei para a entrega da taça. Por respeito aos gregos, ao dinheiro que havia gasto, e sobretudo ao futebol. Nunca vira uma final de Europeu ou Mundial ao vivo. Já que se tratava de uma final, queria ver alguém levantar a taça. Fosse quem fosse.
Aplaudi a selecção grega quando passou diante de mim. Jogando bem ou mal foi uma equipa que se deu ao respeito, que lutou e que tinha ali o seu dia de glória.
Saí triste e resignado. Pensei na segunda-feira de trabalho que tinha por diante.
Nunca me arrependi de ter ido, e se voltasse atrás voltaria a querer estar presente. Todo o Euro 2004 foi uma festa, que me proporcionou algumas das melhores recordações que tenho de toda a minha vivência desportiva.
No fundo, a festa apenas terminou umas horas antes do previsto, pois é importante que se diga que foi esse, esse mesmo, o momento mais alto da história do futebol português.

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